Floresta de Little Hangleton

Sorriu ligeiramente para a gêmea antes assim que apareceram na floresta. Um sorriso rápido e doce, mas que foi deixando sua face com a mesma instabilidade a qual viera. Enquanto a menor preparava o terreno, tocou uma das árvores mais próximas, apoiando nela todo o peso e fechando os olhos rapidamente. Focava-se nos sentimentos certos. Focava na intenção. Nenhum ritual, poção ou feitiço vale de alguma coisa se ele não for munido da correta. Era a parte meio difícil. Sintonizar-se com a força dos deuses, alcançar a Deusa e o Deus e conciliá-los com o restante de suas crenças, achando espaço suficiente para cada um. Fenrir ficava com a parte fácil. Quer dizer... Mais fácil do que alcançar paz no turbilhão de emoções em que Erik se embrenhava.

"Pai, peço a você que abra os portões de Valhalla. Abra-os à força se precisar. Convença Odin de deixar que as almas passem. Convença à Hela ou qualquer um que precise. Deixe que Bjorn e Freya alcancem o lugar que merecem. Eles são como nós. Eles são lutadores incompreendidos, com honra e lealdade. A eles pertence o banquete eterno. Me ajude, Loki. Que assim seja, e assim será." A fera era rude. Mesmo em prece parecia desferir rosnados insistentes e caóticos. Loki não era santo, então o Sosken também sabia que ele não se importava. Qualquer ajuda seria bem-vinda em momento tão crucial. Afastou-se do tronco largo, deixando que o ar lhe invadisse os pulmões. Tinha feito o melhor que podia até então. Desligara-se do mundo para alcançar os objetivos necessários.

Quando reabriu os olhos, Singrid já tinha terminado sua parte magnificamente. Se adiantou para a loira, puxando da mochila extensa as duas caixas de madeira e a pequena caixa aveludada, entregando tudo para ela. Ficou satisfeito que a pequena não lhe fizesse nenhuma intromissão, afinal sua estabilidade costumava ser pouco duradora. Qualquer que fosse o desvio da conversa provavelmente teria feito sua sintonia ruir, levando-o outra vez para a selvageria daquele que carregava. Suspirou baixo, assistindo em silêncio enquanto a gêmea trabalhava. Embasbacado, percebia o quanto ela melhorara desde a última vez. Muito melhor do que si. Estava provavelmente bastante preparada para se graduar outra vez. Disciplinada, direta, certa de cada ato. Precisou sacudir a cabeça e afastar a questão. Odiava ver que sua princesa crescia. Abominava.

Ao sinal esperado, aproximou-se outra vez, colocando a varinha junto a dela. Deram as mãos e o moreno precisou praticamente repetir o ritual, primeiro entoado pela voz feminina. Estava enferrujado e esquecia muitas das palavras. Ainda que na religião a intuição fosse bastante considerada, cada frase também era munida de muito poder. Um pequeno erro de colocação teria feito o poder diminuir, como um feitiço realizado com o movimento errado da varinha. Alguns saíam, muito menos potente do que o original. Outros apenas não davam em nada. Não queria, ou melhor, não podia sequer suportar a ideia de que falhasse com os pais logo nos últimos passos. Precisava daquela vitória. Precisava daquilo para poder prosseguir.

Ao final, aceitou as folhas que ela o entregava. Contornou a pilha que o fogo incendiava e aos poucos deixou que o material deslizasse entre os dedos. Geralmente era simplesmente terrível em seguir ordens ou instruções... Mas não se importava naquele caso. Erik era sensato o bastante para entender a importância de tudo aquilo, assim como perceber o quão melhor a menina era com a parte espiritual quando comparada a si. Estava tudo bem quanto a isso. Até porque, ela era seu Sol. Trabalhavam melhor cada um em seu setor e formavam uma dupla perfeita juntos. Afinal, a dualidade partia do pressuposto de que dois indivíduos não eram iguais. Opostos perfeitos, que se complementavam.

Quando retornou, observou a loira talhar um corte no próprio dedão. Precisou de bastante autocontrole para extinguir a preocupação de si. As gotas carmesim pingaram nas chamas, fazendo-as vibrar e crescer. Sorriu de canto, satisfeito. Por impulso, assim que ela lhe passou o Athame aproveitou do contato de poucos segundos e puxou para si a dor suave do ferimento. Não era nada. Quase nada. E agora já teria sumido. Só então foi sua vez. Cortou a ponta do dedo ao tomar a lâmina, imitando-a no gesto. Aquela parte conhecia. Lembrava-se de quando os dois tinham feito o rito pela primeira vez. Talvez pelo fogo, talvez pela nostalgia, sentiu o corpo esquentar e agradecer, satisfeito com o que sabia que aconteceria.

Deixou que o próprio sangue fluísse para as chamas, escorrendo do corte e sendo engolido pela pira. Era pouco, mas de grande significado. — A partir de hoje só temos um ao outro. — Repetiu, sorrindo-lhe sem muito humor. Era uma afirmação eterna. Uma verdade que juravam diante dos deuses. Ela era sua e ele seria seu, até o fim dos tempos e mais além. Fechou os olhos, o coração aliviando a pressão. Sentia, em cada osso do corpo, que os pais já tinham conseguido ir. Sentia com a mesma certeza que sentia o sangue correr pelas veias. Com a mesma certeza de que Fenrir estava preso à si. Satisfeito, Respirou mais tranquilo. O Início de sua vida. Ou, pelo menos, o início que importava. Assentiu para a proposta da irmã, finalmente, e seguiu-a para um canto mais distante do fogo depois de apanhar a varinha e guardá-la outra vez.

— Que nossos dias sejam tão prazerosos quanto o banquete deles. — Ergueu o vinho aos céus quando foi sua vez, sorvendo uma boa quantidade da garrafa em um gole só. Há algum tempo não bebia com tanta liberdade, sem a culpa do enterro dos pais pesando-lhe os ombros. O álcool parecia ter até um novo sabor, muito mais maravilhoso do que se lembrava. Devolveu a garrafa para a gêmea, limpando a boca na manga da blusa para apoiar as costas no tronco de uma das árvores, a cabeça sutilmente inclinada para o alto, acompanhando a fumaça que subia ao rumo de Valhalla. Uma das visões mais maravilhosas que havia experimentado ao longo de toda a vida. A promessa do banquete eterno. A felicidade concreta da liberdade.

— A Mãe estava apegada demais aos ossos. Não foi gentil comigo, devo dizer. Cavar as covas foi mais difícil do que colocar alguém dentro delas. — Resmungou, já sem todo o ar etéreo e sacro do ritual, revirando os olhos com descaso. Levantou as mãos na altura dos olhos, fitando os filetes de sangue que voltavam a manchar-lhe a carne. Um incômodo ardido e pouco vistoso. Tinha as unhas de um mendigo morimbundo que se metera em alguma briga agora. Ou de algum morto-vivo que precisara destruir o próprio caixão para sair. — E a caixa... Bom... — Começou, pigarreando baixo para retomar o foco. Desviou o olhar e pegou novamente o vinho para se concentrar.

— Não tinha muito do ouro deles sobrando para queimar. Tampouco estava disposto a queimá-la junto com nossos pais. Mas, como pede a tradição, foram queimados com os bens mais preciosos. A maior parte de nossas fotos em família, os relógios do pai, algumas joias da mãe. Quase tudo que encontrei ao longo desses anos. — Comentou tentando parecer deliberado, ainda que não pudesse esconder o quanto aquilo o afetava. Apesar de toda a rigidez e de todas as decisões e ações do moreno, a família ainda era um ponto que destroçava seu coração. — Guardei isso para você. — Empurrou para ela um colar de Freya com uma pedra talhada de runas nórdicas e o anel de casamento.

Bebeu outro grande gole da garrafa antes de tirar do bolso uma corrente idêntica, dourada, com as mesmas gravações, e o anel de casamento do pai. Sorriu-lhe gentil, colocando em si mesmo a pequena herança enquanto a assistia analisar a sua. Pequenos pertences, bastante significativos, que os lembrariam todos os dias dos progenitores. E lembrariam a Erik a todo instante de seus objetivos e o motivo de tê-los escolhido. Por fim, devolveu a garrafa, encarando a claridade que as chamas proporcionavam. Em súbito, tirou a varinha do bolso. Existia algo, uma única cena, que era ainda mais bonita do que a fumaça indo para Valhalla.

Quando os pais renovaram os votos, refazendo o casamento, Singrid e Erik entraram como padrinhos. A gêmea estava linda, com o cabelo meio preso em uma trança delicada e um vestido simplesmente perfeito. Fizeram em um bosque, na Noruega. Nevava, mas estavam todos descalços, em contato com a Natureza e cada deus que a impregnava. Ainda lembrava de como os dois sorriam no altar improvisado. Lembrava do cheiro amadeirado suave que ainda compunha sua amortentia, junto com o perfume infantil de Sing. A paixão pela felicidade era um dos segredos mais profundos do Sosken. O amor só lhe vinha por coisas que o lembravam da família... E por uma certa médica que o remendara quase todos os dias na escola.

Ergueu o objeto mágico, fechando os olhos. Embriagado nas memórias, embargado em cada pequeno detalhe. Sentia-se seguro. Tentava ao máximo fingir que presenciava aquele dia pela primeira vez. Sorriu, decidido. Há exatos cinco anos não conseguia produzir um patrono corpóreo. — Expecto Patronum. — Exigiu, a voz quase em sussurro. Sua primeira tentativa desde a morte dos pais. Abriu os olhos, acompanhando o brilho prateado que escorria da ponta da varinha, vendo-o se curvar e se enrolar sobre si mesmo diante dos olhos. Esperava, ansioso, para que o lobo retornasse para si. Ansiava por ver novamente a criatura gigante, dono de sua forma animaga e de seu maior escudo.

E então, a fagulha diminuiu. A bola disforme tomando o lugar da criatura. Sorriu triste, voltando o olhar para a irmã. — Pensei que talvez desse sorte... — Comentou desanimado, dando de ombros fingindo não se importar. A verdade é que a falha mostrava muito de si. Provava que as cicatrizes ainda eram muito grandes, que as dores ainda o tomavam por demais. Suspirou baixo, tentando prosseguir. — Aliás, tem uma coisa que você precisa fazer por mim.

Tentando ignorar os acontecimentos anteriores, apontou a varinha para o ar, entre ambos. Refez rapidamente sua adaptação da marca dos comensais, dessa vez mantendo apenas a parte com a cobra serpenteando, enrolando-se sobre si mesma nos três triângulos sequenciais do nó dos enforcados e uma proporção miniatura, apenas um segredo entre irmãos. Tinha certeza de que a loira o tinha visto no início da noite, pairando nos céus, mas precisava que ela entendesse corretamente do que se tratava. — Lindo, não é? Se chama Quia Othinus. É uma adaptação minha para Morsmordre. Uma maneira de me desligar dos antigos lordes e, ainda, manter visível a proposição. Em breve recrutarei mais comensais e essa vai ser a marca vista por todo o mundo mágico.

Desfez o vislumbre se aproximando mais da gêmea. Assim, tomou-lhe uma das mãos, tocando o pulso pálido com a ponta da varinha, pressionando ligeiramente enquanto deixava a magia fluir. Não era como fazer uma tatuagem. Não precisava traçar ou correr o objeto pelos moldes que queria: a magia o fazia de uma vez só, espalhando-se na pele. Existiria bastante dor se Erik não estivesse absorvendo a sensação. Não disse nada, não pretendia contar para a pequena o que o favor causaria à ele. Mas não demorou para verem Valknut contornado por Jörmungandr, a serpente mitológica que mordia o próprio rabo. Ambos símbolos pretos, vívidos.

Retirou a varinha, para que a menor observasse com cuidado o que precisava fazer. — Preciso que faça isso em mim, no peito. Preciso que aprenda a fazer para que também seja capaz de retirar. Assim, quando o Ministério pegar um marcado, poderá retirar as marcas para mim. É o jeito mais seguro de manter os comensais sem ligação. Preciso disso. Pelo menos por enquanto. — Explicou por fim, sorrindo-lhe gentil. Antes que obtivesse uma resposta, desabotoou o blazer e a camisa social, deixando-se exposto diante seu Sol. — Vamos, coloque a varinha aqui. — Instruiu, indicando com o indicador a posição. Quase central, no meio da caixa torácica.

— Dizem que o coração fica do lado esquerdo... Mas a verdade é que sua maior ponta é que fica. Ele está centralizado, de maneira geral, bem aqui no mediastino. — Explicou, para que a loira soubesse o exato motivo da localização da marca. Ela merecia entender o que precisaria fazer em breve. — Então não quero que marque apenas a pele. Quero que imagine a marca na pele apenas como a parte visível de um iceberg. Precia embrenhar o desenho em mim. Quero que faça fluir cada linha através do peito, se enrolando por minhas veias principais e artérias. É isso que me ligará aos comensais. Pode fazer isso? — Pediu em um tom acima de um sussurro inaudível. Olhava-a nos olhos, transmitindo a confiança.

— Quando precisar retomar a magia, quando a absorver de volta, ela virá para si com toda a força que exigir. Provavelmente vai lacerar algumas coisas... E é assim que o segredo sempre será guardado. Ninguém nunca poderá contar o que viu. — Explicou por fim, deixando que Singrid entendesse finalmente a parte mais importante. — Não estou te pedindo que mate ninguém. Evitarei que os comensais sejam pegos. Mas, se forem, poderá retirar a marca com cuidado, o que exige tempo, ou de maneira mais bruta, o que é mais rápido. Se um dia sentir que não tem tempo ou que está diante de alguém que irá me entregar... Faça de maneira rápida.