Cabeça de Javali

Era um começo de noite parado no Cabeça de Javali. Por alguma razão poucos clientes haviam parado no pub até então, mas Valentín não reclamaria. Por mais que gostasse de se manter ocupado, era bom ter um turno tranquilo de vez em quando. Ele ia e voltava das mesas de tempos em tempos, servindo mais bebidas e petiscos aos clientes, mas na maior parte do tempo ficava no balcão à espera de que algo acontecesse.

A falta de clientes também significava menos trabalho para o cozinheiro, que havia tirado uma pausa rápida para fumar do lado de fora. Valentín revirou os olhos quando se lembrou daquilo. Ele tentava ter um bom relacionamento com o resto dos funcionários, mas comportamentos como aquele o irritavam bastante. Mesmo que não houvesse trabalho a ser feito naquele momento, não significava que a situação não poderia mudar em menos de um instante. 

Ele respirou fundo tentando se acalmar. Por mais que a situação fosse frustrante, o sonserino não arrumaria confusão por conta daquilo. O cozinheiro já era um homem idoso e trabalhara no bar por boa parte da vida. Se o proprietário não se incomodava, então ele também tentaria manter a calma. O som da porta se abrindo fez o jovem sair de seus devaneios. Ele rapidamente virou seu rosto para cumprimentar o novo cliente, mas as palavras silenciaram em sua garganta assim que seu cérebro registrou quem estava ali.

- Guilherme...? - Foi o que conseguiu pronunciar, demorando alguns segundos para sair do estado de choque. Seu velho rival dos tempos em Hogwarts havia acabado de adentrar o Cabeça de Javali. Em um instante memórias começaram a ocupar sua mente de todas as vezes que os dois se meteram em problemas com aquelas disputas estúpidas de quando eram estudantes. Valentín não conseguiu deixar de se envergonhar quando se lembrou do quão infantil fora durante aqueles anos.

Mas essa não era única razão. Por mais que jamais fosse admitir em voz alta, a razão pela qual havia se tornado tão competitivo contra o lufano era por conta de uma paixonite secreta que nutrira por ele durante os anos que estudaram juntos. Mas por mais que a presença dele aqui agora tivesse mexido com esses antigos sentimentos, Valentín ainda tinha um trabalho a fazer. Tentando recuperar ao menos um pouco da compostura, o jovem engoliu em seco e tentou lançar um sorriso cordial na direção do recém-chegado.

- Hum... Então... - Ele começou se saber muito bem como acabaria aquela frase. - O que posso fazer por você?

A voz de Guilherme quebrou o silêncio e o coração de Valentín acelerou em resposta. Sentira tanta falta assim de ouvi-lo dizer seu nome? O sonserino não resistiu a uma rápida olhada de cima a baixo, percebendo o quanto o lufano mudara nos últimos três anos. Parecia mais alto e forte, além de irritantemente mais bonito. Valentín pragrejou em pensamento quando se pegou imaginando como seria tocar os músculos debaixo daquelas roupas.

Ele só saiu do transe quando ouviu a voz do outro novamente, rapidamente balançando a cabeça sinalizando que o entendera. Um leve rubor coloriu seu rosto naquele momento. Será que fora pego encarando? Sair correndo pela porta e nunca mais olhar para trás começava a lhe parecer cada vez mais razoável. Valentín se lembrou das provocações e desafios que costumava lançar contra Guilherme, com o falso motivo de tentar se provar superior, mas que na realidade tentavam apenas fazer com que o lufano prestasse atenção nele. "Ugh. Será que é muito tarde pra esconder minha cabeça num buraco?"

- Bom pedido. - Ele finalmente conseguiu responder quando Guilherme se pronunciou novamente. O sonserino escrevia no caderninho com destreza, mesmo com a tensão que borbulhava em seu interior. - As bebidas daqui são as melhores pra se espantar o frio. - O sorriso do lufano reconfortou o atendente, que não conseguiu deixar de emitir outro em resposta. A piscadela que viera em seguida cancelou completamente aquele efeito calmante, fazendo com que o coração de Valentín voltasse a se acelerar e o rubor voltasse a sua face. - E-eu também! - Ele repondera um pouco rápido demais, amaldiçoando a própria ansiedade em pensamento. - Digo... Hum... Vamos encontrar uma mesa pra você, sim?

Por alguma razão Valentín estava começando a se acalmar outra vez. A proximidade de Guilherme fazia isso com ele. Era como se ele tivesse uma personalidade tão amigável que fazia o sonserino se sentir desarmado quando interagiam por tempo demais. Valentín detestara isso no passado, mas aqui, agora, a companhia dele provocava uma sensação melhor do que gostava de admitir. Ele guiou o freguês para uma mesa próxima do balcão e esperou que ele se sentasse. - Você teve sorte hoje. Geralmente essa é uma das primeiras a serem ocupadas.

Valentín já se preparava para ir chamar o cozinheiro quando a porta dos fundos fez um breve barulho, sinalizando que havia sido aberta e fechada. "Finalmente!" Pensou ele. Sua atenção foi chamada de novo quando Guilherme disse sua próximas palavras, deixando-o sem reação por alguns instantes. O sonserino respirou fundo e se apoiou sobre a mesa antes de responder. - Isso é verdade. - Ele tentou lutar contra o sorriso que se desenhava em seus lábios. - Escuta... Erm... - O espanhol tentava tomar coragem para o que viria em seguida, mas aquilo não era nada fácil. - Eu sei que eu não era nada fácil lá em Hogwarts. - Ele coçou a nuca enquanto evitava olhar nos olhos de Guilherme. - Te fiz passa por umas coisas bem desnecessárias. Especialmente nos jogos.

- O que eu queria dizer é... Hum... - Ele suspirou antes de continuar, levantando os olhos para encarar o lufano diretamente.  - Eu sinto muito. Eu sei que não fui a pessoa mais madura do mundo.

- Lá vai você de novo... - Valentín ficara visivelmente envergonhado quando fora chamado de adorável por Guilherme. Momentos como aquele o faziam se lembrar da estranha dinâmica que tiveram no passado. Quando ele achava que estava seguro do que sentia, lá vinha o lufano e embaralhava suas emoções completamente. - Não me lembro de ter me achado muito adorável quando estava tentando escapar dos meus balaços. - O sonserino abriu uma breve expressão de desafio, mas logo seus lábios desmancharam num sorriso, sinalizando que estava apenas brincando naquele momento. Ele nunca fora muito bom em demonstrar afeto, mas tinha que admitir que aquele definitivamente não fora o jeito certo.

Guilherme sempre fora bonzinho demais para o próprio bem. Apesar de saber se impor quando precisava, o lufano nunca guardava mágoas ou ressentimentos. Ele parecia sempre disposto a esperar pelo melhor das pessoas, mesmo se a situação exigisse um pouco mais de cinismo. Apesar de tal comportamento parecer um excesso de inocência aos olhos de Valentín, também fora uma das coisas que mais o atraíram no outro homem. Pelo visto aquela atração continuara escondida dentro dele todos esses anos, porque o atendente começava a sentir antigos sentimentos voltando a arder em seu peito.

- Eu estou em serviço, senhor Bouwknech. - Respondeu ele ao convite de Guilherme para se sentar, com uma falsa expressão de indignação, mas seu sorriso traía que não passava de mais uma provocação. Quanto mais as coisas mudavam, mais continuavam as mesmas. Os próximos elogios fizeram o rosto de Valentín assumir tons de vermelho novamente. Ele não sabia receber elogios muito bem, então só balançou a cabeça negativamente enquanto o outro continuava a fazê-los.

Mesmo depois de todo aquele tempo Guilherme ainda tentava entendê-lo, queria saber mais sobre ele e o que gerara aquela mudança de comportamento. - Bem... - Ele começou a articular palavras, subitamente envergonhado outra vez. - A vida acaba ensinando de um jeito ou de outro. - Seu olhar baixou um pouco, enquanto ele posicionava o peso do corpo sobre o pé esquerdo e cruzava os braços timidamente. - Às vezes... Às vezes a gente simplesmente se dá conta de que perdeu muito tempo fazendo coisas estúpidas. - Sua voz ameaçou tremer e ele deu uma pausa para respirar antes de continuar. - Às vezes a gente percebe que perdeu o que mais queria porque foi muito estúpido pra admitir o que realmente sentia.

- Hum... A-acho que está na hora de levar o seu pedido, né? - Ele saiu apressadamente em direção à cozinha, praguejando mentalmente contra a própria honestidade. Talvez fosse culpa de Guilherme por desarmá-lo daquela maneira outra vez. Ele demorou algum tempo a mais do que deveria para retornar, mas quando o fez parecia ter se recomposto ao menos superficialmente. Valentín poderia ter ficado nos fundos enquanto esperava o pedido ficar pronto, mas algo dentro dele insistia para continuar a conversar com o lufano. Arrependera-se de sua decisão assim que voltara, já que o outro percebera imediatamente os pequenos sinais que seu corpo demonstrava.

- É só o calor da cozinha! - Mentiu ele, tentando não se expor demais outra vez. Era fácil subestimar Guilherme por causa de sua personalidade bondosa, mas o homem tinha uma percepção mais apurada do que parecia a princípio. As próximas palavras dele não fizeram muito para acalmar a confusão interno nos sentimentos de Valentín. Antigamente ele teria fechado a cara e se indignado quando o outro disse que tentaria ajudá-lo mesmo contra sua vontade, mas agora essa frase trouxe um sorriso bobo ao rosto do sonserino. - Você não cansa desse complexo de herói, não? Você não pode ajudar todas as pessoas do mundo, Guilherme. O que acontece se você mesmo acabar precisando de alguém? - A frase saiu com mais doçura do que o esperado, mas ele não se importou dessa vez. Estava começando a se perder naqueles olhos novamente.

A relação entre eles sempre foi complicada, mas o ponto onde as coisas azedaram de vez foi durante um evento vergonhoso que Valentín não gostava de se lembrar. Depois de um dia particularmente chuvoso, os dois haviam voltado ensopados do campo de quadribol. Guilherme ficara tão lindo com o cabelo molhado caindo sobre o rosto que o sonserino não conseguira formular sequer um comentário sarcástico contra ele. Eles tiveram uma conversa de verdade pela primeira vez na vida e as coisas quase evoluíram para algo mais romântico. Valentín não conseguiu controlar seus sentimentos e tentou beijar o rival, mas acabara sendo rejeitado e isso inflamou ainda mais seu desejo de superá-lo a qualquer custo. Um tanto dramático, mas em sua defesa ele era um adolescente.

A voz do lufano o trouxe de volta à realidade e só então o sonserino se lembrou do pedido na cozinha. Ele já se começava um pedido de desculpas, quando foi interrompido novamente. O interesse de Guilherme fazia antigas esperanças surgirem dentro dele. O homem parecia bem interessado em saber o que acontecera com ele nos anos recentes, e Valentín estava começando a se perguntar se havia algum interesse mais profundo ali. - Se por erros você está falando da vez que deslocou meu ombro com um balaço... - Ele começou. - ...eu te perdoo. E se eu me lembro bem todas as vezes que você me machucou foram tentando se defender de algum problema que eu criei. - Ele sorriu com uma expressão tímida, cometendo o erro de encará-lo nos olhos novamente e ser envolvido pelo mesmo turbilhão de emoções.

- Eu... Hum... E-espera um pouquinho, ok? - As últimas perguntas de Guilherme foram um pouco demais para o jovem hispânico, que partiu em direção a cozinha para buscar o pedido e com sorte ter um tempo para respirar. Quando voltou alguns segundos depois, Valentín colocou cuidadosamente a bebida e o petisco sobre a mesa, tentando não demonstrar o quanto suas mãos tremiam. - Espera só até provar. O gosto é ainda melhor do que o cheiro. - Ele sorriu com o comentário do outro, apesar de um tanto preguiçoso, o cozinheiro tinha um dom natural para o que fazia.

Por um instante Valentín acreditou que Guilherme se esquecera da pergunta anterior, mas ele a trouxe à tona assim que começara a comer. Aquele lufano não tinha jeito, mas o sonsireno adorava sua espontaneidade. Mas por mais que aquela ideia parecesse perfeita, o atendente não podia deixar de se perguntar se realmente deveria seguir adiante com aquilo. Levara um bom tempo para enterrar aqueles sentimentos, mas bastara uma breve conversa com Guilherme para trazer tudo à tona. Sua resistência mental foi vencida quando o homem lançou mais uma piscadela em sua direção. Ele suspirou dando uma pequena gargalhada, mas respondeu logo depois.

- Você é terrível, sabia disso? - Ele tentava parecer sério, mas não conseguia mais disfarçar o sorriso que teimava em continuar em seu rosto. - Meu turno acaba em dez minutos. Eu conheço um lugar onde a gente pode conversar sem ter ninguém bisbilhotando. - Seu olhar se conectou ao dele e as palavras engasgadas em sua garganta começaram a fluir. - Eu... senti sua falta, Guilherme. Pode parecer loucura e provavelmente é mas... - O sonserino engoliu em seco. - Eu não quero que você suma da minha vida outra vez.