Depois de algumas semanas de trabalho, o quadro pendurado na parede atrás da estação de trabalho da bruxa começava a incomodá-la. O falatório era aceitável, mas ela encontrava-se cansada de explicar que sua origem não era japonesa e sim cazaque. Revirou os olhos e direcionou sua atenção para o papel que preenchia. Uma intimação para comparecer a um interrogatório, algo simples e de pouca importância. Pelo menos para quem entendia que o interrogatório era só ocupação de tempo, o caso não iria muito longe de qualquer forma. Terminou tudo com uma rubrica e os carimbos do ministério e do departamento, era uma parte divertida do trabalho. Carimbar documentos.

Todavia, a mente não estava ocupada apenas com as tarefas que fazia, na verdade estas estavam quase automáticas, mas sim no que aconteceria na primeira hora da tarde. Um julgamento estava marcado e a bruxa deveria comparecer para auxiliar os advogados mais experientes, e também obter sua própria experiência. A perna direita estava inquieta, transbordando o anseio pelo que viria. As horas passaram de forma tímida, e após um almoço leve que parecia não encontrar lugar cômodo em seu estômago a bruxa voltou diretamente para o Supremo Tribunal Ministerial.

O ambiente frio e robusto era ocupado por bruxos e bruxas com capas longas e chapéus negros, no dia o Presidente da Suprema Corte seria o regente do julgamento. Não parecia nada muito grande, era algo burocrático e necessário para manter a boa aparência da política e justiça bruxa. Kahnwald, estava arrumada de forma impecável: os cabelos lisos estavam alinhados, a maquiagem fora retocada depois do almoço, os dentes escovados e a roupa minimamente analisada, sobre ela usava uma capa simples de cor preta e devidamente abotoada. Sua localização era em um canto neutro, ao lado de outro jovem advogado tão nervoso quanto ela. Na sua frente os advogados mais experientes estavam sentados, carrancudos e trocando confidências.

O julgamento deu início na exata hora marcada. O nervosismo que fazia as mãos suarem foi substituído por um grande interesse nas ações de seus colegas mais velhos. Ela foi chamada de forma discreta, apenas um acenar de mão. - Não, senhor, nos depoimentos não foi mencionada nenhuma Theodora Aksness. - A resposta pareceu não agradar o mais velho, de forma ríspida foi ordenado que verificasse a documentação de forma rápida. Ostara, queria resmungar, dizer que possuía completa noção do que estava falando. O réu tinha uma inconsistência em suas alegações, na verdade uma grande falha da equipe de defesa. Controlou suas atitudes, por ora precisaria engolir uma ou outra situação como aquela. Após verificar de forma ligeira os documentos pelo nome de Theodora Aksness não encontrou nada. - Como eu falei, não encontrei nada. Ele não mencionou ninguém com esse nome antes! - E lá ia-se uma tarde de julgamento fora. A acusação tomaria atitude, questionaria o réu e uma nova leva de depoimentos seria coletada. “Alguém ficará irritado!” observou.

O resto do julgamento se arrastou, o tribunal decidiu não terminar tudo naquele momento e autorizou mais depoimentos e coleta de informações. - Mais documentos para ler! - Falou com falso ânimo, elevando os braços minimamente. O colega, com quem a bruxa fez uma pequena piadinha, sorriu e concordou. Não era a atitude mais madura, mas ninguém notava a presença dos dois ali. Não por menos, foram logo dispersados e enviados para a Sala dos Advogados, local onde deveriam dar início às intimações para depoimentos e autorizações de investigação.

De volta à sala organizada e com cheiro amadeirado, a jovem bruxa ocupou seu lugar de direito. - Não vou comentar o julgamento com você… - Cortou de forma rápida o quadro fofoqueiro que a observava durante todo o dia, cinco dias por semana, às vezes seis. - Senhorita Kahnwald, meu interesse é estritamente profissional! - Exclamou a pintura ofendida. - Claro! Sua profissão acabou há mais de setenta anos. Isso, bem lembrado! - Pontuou, acenando a pena com que escrevia para o quadro. Após uma pequena ofensa, que a bruxa optou por ignorar, ela teve sua paz restabelecida. - Ei! Você faz as autorizações e eu as intimações?! - Perguntou ao colega que ocupava a função e a sala com ela, o outro jovem torceu o nariz. - Desta vez não, Kahnwald! Eu não gosto de fazer autorizações… - Ela estava jogando sujo, também não gostava, porém deu de ombros e aceitou que seria sua vez. - Tudo bem! - Concordou amuada.

Após algumas horas as costas estavam dolorosas, os dedos não possuíam mais posição confortável para segurar a pena e carimbar documentos perdeu a graça. Mas todas as tarefas estavam concluídas e prontas para serem registradas por um juiz. Alinhou os pergaminhos bem escritos e detalhados, os deixou de lado para colocar a capa de tecido fino e jogar a bolsa de couro marrom sobre o ombro. Abraçou o pequeno bolo de papéis com carinho e caminhou até a sala dos juízes, onde deveria deixar os documentos para serem registrados. Após concluir sua última tarefa, Hele, caminhou pelo corredores parcialmente vazios até o Átrio e pegou a primeira lareira disponível para casa.


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