Rua Beco Diagonal

Respirou fundo, olhando-se no espelho pela décima vez, ainda que geralmente não se preocupasse com a aparência. Tinha passado quase um mês pelos lados da Noruega e, ainda que não buscasse confusões, as confusões claramente o tinham encontrado. Avaliou com cuidado excessivo a face, estalando a língua em sinal de desaprovação para a pequena cicatriz no queixo. Precisou controlar-se para não resolver com magia. Tinha aprendido com o pai que os ferimentos faziam parte da história de alguém e que não devia simplesmente apagá-los com mágica. Curar-se, sim... Mas nunca simplesmente fazer com que pareçam nunca ter existido.

Resmungou algo de maneira quase inteligível antes de sair, decidindo que não poderia fazer mais nada. Cabelos meio bagunçados, calça jeans escura e rasgada, camisa com listra verticais de mangas curtas com os primeiros três botões abertos e um coturno era o melhor que podia conseguir. Adicionou um óculos escuro apenas para ornar, com a armação dourada e fina. No segundo seguinte partira pela rede de flu até o Beco Diagonal. Os dedos das mãos estremeciam ligeiramente, um único sinal de ansiedade. Já sabia o que estava por vir e, ainda que preferisse que não acontecesse em local público, tinha certeza que não podia reclamar.

Sing era sua única família. Ao menos era a única família viva que ainda restava. Sua irmã gêmea, a garotinha pela qual lutara no último ano de Hogwarts, ameaçando qualquer um que ousasse se aproximar. E, ainda assim, tinha deixado de responder algumas várias corujas dela. Erik era um bom mentiroso, realmente era, mas evitava enganar a loira sempre que possível. Quando não podia contar algo, deixava deliberadamente de mencionar. Omitia, é verdade, mas nunca mentira para sua pequena. Não responder corujas era uma tática milenar para fingir que não estava fazendo nada perigoso ou tomando decisões idiotas. Decisões como renovar um ritual de caça no extremo norte com um bando de idiotas que conhecera na travessa do tranco.

— Linda como sempre, devo dizer. — Anunciou em voz alta ao se aproximar da irmã. Quase passara direto por ela no meio da rua lotada, mas simplesmente não conhecia mais ninguém que mantivesse as marcas de rituais na face mesmo em plena luz do sol. Riu baixo, aproximando-se em passos largos para deixar um beijo rápido na testa da menor. Singrid nascera primeiro, mais velha por apenas cinco minutos, mas continuava sendo bastante mais baixa do Brandit. — Mas eu tomaria cuidado com comer tanto doce assim. — Provocou ao se afastar, sentando-se de frente para a ministerial. O sorriso travesso expondo os caninos alongados.

— Não vai querer retirar cáries, não é? Agora que é tão importante, sairia na capa do jornal. — Zombou, arteiro. Apesar do trajeito sempre arrogante e frio, com a irmã Erik parecia simplesmente criança. Voltava aos dezesseis sempre que a via após longos períodos, como se a saudade deturpasse sua percepção temporal. — O engraçado é que sempre pensei que eu é que seria matéria de capa. Arrombamento de gringotes, destruição do património público... Sei lá.

Ainda que tivesse certa aversão a contatos físicos, permitiu que a gêmea o abraçasse, retribuindo o afeto de muito bom grado. Sing era a única pessoa em todo o mundo que não o deixava desconfortável pela proximidade, uma casa em outro corpo para onde sempre sabia que podia voltar. O cheiro, o calor... Tudo era absolutamente agradável, embriagando-o em uma nostalgia meio infantil. Por isso quase foi estranho quando se soltaram, fazendo-o piscar algumas vezes, precisando aceitar o mundo real. Não eram mais criança. Singrid não podia acalmá-lo quando estava bravo ou contagiá-lo com seu otimismo infinito. Pigarreou, afastando os pensamentos.

— Óbvio que não! Estou, como sempre, um colírio para qualquer vista. — Brincou em um gesto de mãos como se dissesse que não era nenhuma novidade. A verdade é que Erik Brandit Sosken nunca soube receber elogios. Preferia ignorá-los, quando vinham de fora, ou apenas brincar com a situação quando eram desferidos por alguém próximo. Assim, sorriu de canto para a menor. — E sabe que não precisa disso. Eu prometi que não te abandonaria, não foi? Nem Hela poderia desafiar uma promessa minha. — O dar de ombros não foi por diversão. O moreno realmente acreditava naquilo, tornando essa sua própria verdade.

— É assessora mas trabalha mais do que qualquer um daqueles babacas. Se as pessoas soubessem o quanto faz pelos inúteis, tenho certeza que apareceria no Profeta com mais frequência do que eu mesmo gostaria. — Resmungou cruzando os braços na frente do peito. O rapaz nunca superaria aquela aversão pelas forças ministeriais, mesmo com Sing trabalhando com elas. Para si, a loira ainda era muito inocente, incapaz de ferir seriamente alguma coisa ou de renegar a própria bondade. Um direito dela, claro. — E prometo responder nas próximas corujas, tá bem? Sabe que não gosto de te preocupar com nada, por isso não respondi.

Em um ato bastante infantil, mostrou língua para ela, rindo baixo da própria ação. Um som anasalado e pouco habitual, que deixava Erik com uma aparência de quase cinco anos mais novo do que geralmente parecia. Era engraçado. Em qualquer outro caso, sob ameaça, teria se descontrolado e surtado. Com Sing era só mais uma brincadeirinha, algo típico e meio bobo. Foi só quando a jovem se referiu ao Coven que Fenris finalmente acordou, rosnando baixo em seu peito, o que Erik voltar a rir. — Ahh, maninha... Sabe o que penso sobre isso. Pra vocês, os cultos são a purificação. Para mim, apenas o sangue o é.

Mudou de posição na cadeira, ligeiramente desconfortável. Tinha algo a pedir. Algo que necessitava da ajuda de sua religião. Suspirou baixo, repensando na resposta. — Mas diga a ela que minha fé anda muito bem... Alimentada, quase literalmente falando. — Deliberou por fim, fazendo o lobo rir da piada interna em sua mente. Naquele mês com os nortenhos Erik tinha provado carnes que nunca imaginara experimentar. Renovara os rituais de caça com lebres, texugos, lemingues, salmão, alces e todo o resto. Ainda tinha o sabor confuso no palato. Não sabia se a irmã entenderia a ironia daquilo tudo, mas sorriu mesmo assim. — Além do mais, Fenris tem suas próprias necessidades.

O último era o único argumento que nem mesmo a Grã-Sacerdotisa poderia questionar. Todos sabiam da aversão da fera para com formalidades. Era uma personalidade carnal, de instintos intensos e pouca conversa. Levantou-se diante o convite, estendendo o braço para que ela o acompanhasse. Na formatura, tinham ido assim. Erik havia se negado a aceitar que algum rapaz a convidasse, ameaçando absolutamente todos que podiam sequer pensar na possibilidade. A levou como sua companhia, de braços dados e roupas elegantes. Era como tinha que ser: Singrid e Erik juntos. Era como sempre seria.

— Não gosto de sol, mas, por você, faço o esforço. — Sorriu-lhe gentil, deixando-se ser direcionado pela loira enquanto os pensamentos borbulhavam na mente. Não existia melhor momento para aquele assunto. Ela mesma tinha tocado indiretamente na questão dos ritos, de modo que a passagem para suas intenções pareciam abertas. Respirou fundo antes de continuar. — Sabe, fui à Godric's Hollow assim que cheguei. Os túmulos ainda estão lá, pálidos e empoeirados. — Talvez não fosse exatamente a maneira ideal de introduzir a proposta... Mas foi o único caminho que o Brandt achou. Desviou o olhar para as vitrines, ainda que não parecesse focar em nada.

— Eles não tinham o direito de fazer isso, sabe? Nem mesmo nos consultaram sobre enterrá-los assim. Embaixo da terra, comidos pelos bichos. — A dor era bastante óbvia no timbre rouco, os batimentos meio acelerados pela mágoa. Podia ouvir Fenris rondar sua consciência. — Na época erámos muito jovens para nos fazer ouvir. Depois a justiça não foi ao nosso favor. Mas, sabe.. Podíamos resolver isso. Eles iriam querer que resolvêssemos. — Anunciou por fim, deixando escapar um sorriso amarelado, típico de quando se encrencava na juventude.

— Não pediria que fizesse algo ilegal se não precisasse muito, sabe disso. — Insistiu antes de qualquer coisa. — Eu vou recuperar os ossos deles, não preciso que me ajude nessa parte. Vou levar os restos mortais dos dois para casa. Só preciso que prepare o ritual de passagem. Eles estão presos aqui, entre os vermes, e como já não podemos cremar o corpo, precisaremos de algo mais elaborado. Não sou bom com isso, você sabe. Só preciso que você consiga um ritual para fazermos dar certo. Nossos pais merecem Valhalla como todos aqueles que morreram lutando.

Franziu o cenho sob os relatos da irmã, não conseguindo conter o descontentamento ao perceber o quão escrava do sistema a jovem tinha se tornado. Erik preferia os dias nublados e as noites de lua cheia, preferiria mesmo uma noite tempestuosa à passar por um dia curtindo um sol de rachar... Mas ela não. Sing adorava a luz. Era autêntica, carinhosa, apaixonada e calorosa como astro maior. Ela era o centro de todo um universo, capaz de iluminar a tudo e todos que se aproximavam. Vê-la abdicar de tanto, entendendo que o ar livre e tardes como aquela eram seu ponto fraco, doeu profundamente no moreno. Exprimiu uma leve careta, rapidamente controlada e eliminada de vista.

— Já te disse o que penso desse seu trabalho. Amo que tenha encontrado algo que goste e que ocupe sua cabeça, mas simplesmente me tira o sono saber que isso faz de você uma ministerial. Eles não te merecem e, se for sincera, algum dia vai assumir isso para si também. — Murmurou em um tom pouco mais alto que um sussurro abatido, descontente demais para discutir sobre as escolhas da irmã. Ela nunca o tinha forçado a fazer nada que não quisesse realmente. Talvez por isso nunca suportou a ideia de forçá-la a alguma coisa, por mais que quisesse isso de todo coração. Precisou respirar fundo e suspirou para retomar a calma. Não podia ser teimoso, não naquele momento.

Já estavam quase no final da rua quando Singrid parou de andar, claramente alterada pela maneira com que Erik tinha conseguido iniciar o próximo assunto. Fechou os olhos por um segundo, agradecendo aos deuses por ter optado por colocar os óculos escuros naquele passeio. Com eles, Ninguém, nem mesmo a gêmea, eram capazes de captar todo o ódio que brilhou em seu olhar. Culpou-se mil vezes em poucos segundos pela própria falta de tato para o assunto. Logo em seguida, voltou seu rancor para os verdadeiros culpados. Não diria para a irmã, óbvio, mas se lembrava bem o bastante dos enterros que o MM programara em massa após a batalha de Hogwarts, pouco delicados sobre os corpos de comensais. Travou a mandíbula antes de puxá-la para si, de modo que ficassem frente à frente.

— Olhe para mim. — Exigiu em um tom baixo assim que a loira terminou de se expressar, não ousando interrompê-la. Podia sentir a raiva que fervilhava sob a pele branca. Podia sentir o coração tomado por fúria e rancor. Ainda que não fosse particularmente violenta, tampouco agressiva quanto o irmão, a Skjold tinha o mesmo sangue que o seu. Era o poder e do mesmo pai que corria por ambas as veias, ainda que nela a empatia da mãe se fizesse mais presente. — Olhe para mim, Singrid. — Exigiu mais uma vez, agora um tanto mais insistente e menos apto a recusas. Era uma das raras ocasiões em que o jovem não a chamava pelo apelido.

— Preciso que confie em mim, pequena. Tenha fé no seu irmão. Acredite quando digo que vou fazer com que todos eles paguem pelos próprios atos. Preciso apenas do seu apoio, mesmo que não concorde com meus métodos. Primeiro vamos purificar nossos pais, vamos enviá-los para gozar da companhia eterna, e, muito em breve, vou à caça outra vez. Agora, como nosso pai fazia. — Instruiu em um tom baixo, rouco e arranhado. Ela, mais do que ninguém, sabia que isso só ocorria quando as duas personalidades se uniam em uma só. Fenris também compartilhava sua ira, os traços da face endurecidos pela dor e pelo ódio de ver o quanto Singrid sofria. O homem e a fera tinham um plano, era óbvio. O único problema era saber qual dos dois o desejava mais.

Puxou a irmã para um abraço forte, apertando-a contra o próprio corpo em sinal de proteção. Seu coração estava disparado, ainda que se mantivesse absolutamente controlado. Beijou-lhe a testa longamente, em silêncio. Não era como se tentasse compartilhar com ela alguma tranquilidade que escondia. Na verdade, o Brandt apenas desejava roubar da menina todas as emoções ruins. Sempre se dispusera a sentir o dobro de dor para que a gêmea não sofresse nada. Odiava mais, se magoava mais, se metia em maiores confusões. Naquele momento, era tudo o que pedia: que Singrid permitisse que ele a protegesse outra vez, que assumisse toda e qualquer negatividade para que ela ficasse livre daquele rancor.

— Hoje iniciamos nosso mês de purificação. Beba como os deuses, ame como eles, odeie e disfrute de tudo aquilo que prepararam para nós. Repudie tudo o que vier da fé enganosa. Precisamos estar na nossa melhor forma para conseguir o ritual. — Pediu com a voz mais contida, mais serena. Empurrara tudo para o íntimo de seu ser, enterrando aquelas memórias junto com o Lobo, de modo a usar tudo aquilo como combustível depois. Aliás, precisaria de muito disso se quisesse mesmo incendiar tudo aquilo que pretendia.

O riso baixo escapou pelos lábios, maneando a cabeça em sinal negativo. Deixou um beijo demorado na testa da irmã, suspirando no processo. Singrid ainda era inocente, de uma certa forma. Ela acreditava na bondade humana, na capacidade dos homens de se manterem em uma constante paz através das regras que regiam o mundo. Uma menina-mulher mais altruísta do que a maioria das pessoas que Erik já conheceu. — Não precisamos do ministério, minha pequena... Mas se entendo que queira lutar com seus recursos. Em breve, se tudo der certo, não vai precisar mais.  — Sussurrou com os lábios próximos do ouvido dela, o tom inebriante, com um timbre inconfundível de determinação.

Por fim, se afastou do toque, respirando fundo e enchendo os pulmões com o ar fresco diante às novas previsões. Tinha mais fé nas palavras acidentais da gêmea do que teria em qualquer clarividente famosa o Grã-Sacerdotisa. Assim como si, a loira tinha sido apadrinhada diretamente pelos deuses. Se ela dizia que conseguiriam, então o Brandt acreditava fielmente nisso também. Fechou os olhos rapidamente, aproveitando a sensação de vitória antecipada. Fenrir fugia em seu peito, selvagem e feral, também confiante sobre as decisões. Seus pais seriam purificados. Bjorn e Freya iriam para Valhalla e Erik finalmente poderia dormir em paz. Não tivera sequer uma boa noite em todos aqueles longos cinco anos.

— Beberemos à eles e ao paraíso eterno. Beberemos até que o hidromel pareça não ter sabor. — Confirmou por fim, entrelaçando suas mãos nas da menor e a puxando consigo ao aparatar. Saíram juntos do beco diagonal, um redemoinho mágico e veloz em direção ao lar. Nada poderia fazer o Sosken tão feliz quanto aquele momento. Comemorariam naquela tarde até o sol perder a cor. E, no dia seguinte, tiraria os pais das lápides ridículas em que eram confinados. Se separariam da Mãe para entrar em Valhalla.

Compras

A tarde estava mais entediante que o normal, com tanto tempo livre era de se esperar que o tempo se arrastasse no lugar de passar, meu pai me trouxera, mas como era de se esperar acabou saindo para resolver outras coisas, me deixando por conta. Embora fosse engraçado ver tantas pessoas caminhando alegremente pelas ruas e vielas, para mim era como se as ruas estivessem inabitadas naquele momento, acabei adentrando em uma viela que levava até a rua principal do beco, embora lá fosse um local longe de ser chamado de calmo, na maioria das vezes pelo menos, e estava ainda mais movimentada àquela hora, eu realmente precisava vagar por entre as lojas afim de comprar os poucos materiais que faltavam para ir para Hogwarts.
Ventava um pouco quando alcancei a rua principal do Beco Diagonal, respirei fundo, ela estava ainda mais cheia do que eu gostaria que estivesse, de modo que era praticamente impossível andar por ela sem esbarrar em alguém, respirei fundo, como algo tão simples tornara-se tão ridiculamente enfadonho era algo que eu realmente gostaria de saber, encarei a rua e comecei a caminhar em direção ao Gringotes.


Josh ▬ Michael (irmão)

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